domingo, 14 de agosto de 2011

A falta de bons cadáveres

Dia desses, sofri um corte no rosto. Um talho profundo, desde a base do nariz até o lábio superior. O colega que me socorreu insistia que eu precisava ir a um hospital. Achei que um esparadrapo resolveria e fui até uma farmácia. Quando tirei o pano que cobria o ferimento e a farmacêutica quase desmaiou, percebi que precisava mesmo ir a um hospital.
Cheguei à sala de sutura achando que impressionaria com meu ferimento. Entediada, a enfermeira me conduziu a uma maca e pediu que eu aguardasse - antes de mim, precisavam cuidar de um motoqueiro com a perna em frangalhos e um operário com o dedo quase decepado. Passando a língua sobre meu miserável corte e chupando o próprio sangue, quase me senti o sortudo daquela sala.
A menina escalada para me costurar a cara parecia estar em seu primeiro dia de trabalho. Aline, uma estudante de medicina transbordando insegurança em todos os movimentos. Tentei tranquilizá-la com um sorriso, mas sorrir me doía, além de abrir ainda mais o ferimento.
Depois da primeira picada da anestesia, Aline falou em voz alta o que deveria apenas ter pensado: "devia ter usado uma agulha mais fina...". Azar, seguiu picando com aquela agulha mesmo, que mais parecia um prego. Vendo que a colega tinha dificuldades, outro jovem residente veio observá-la. Quando Aline finalmente conseguiu terminar o primeiro ponto, seu colega a encorajou: "o próximo vai ficar melhor, tu consegue!". Ai, ai, ai.
No fim das contas, Aline não se saiu tão mal. Passado um mês, ninguém diz que levei quatro pontos no bigode.
O episódio lembrou-me um comentário que recebi no Taxitramas, de um estudante de medicina, a respeito de um texto que escrevi sobre a compra de dentes em cemitérios por estudantes de odontologia. O futuro médico reclamava que um dos problemas da sua universidade era justo a falta de cadáveres (em bom estado) para que os alunos pudessem praticar...
Aproveito esta crônica para doar, publicamente, meu corpo à ciência. Alunos de medicina podem usar-me para aprender a costurar... desde que eu já esteja devidamente morto, claro.

10 comentários:

Anônimo disse...

Só faltou dizer como conseguiu se ferir tão profundamente! Não vai me dizer que ainda usa navalha para fazer barba!!!!
Boa crônica!

Renato M, disse...

Reafirmo, é bem verdade que nos faltam cadáveres, Mauro. A propósito, o treinamento de sutura (dar ponto) é feito em cadáveres (embora nesse caso não é necessário que estejam em tão bom estado).
Quanto a doar seu corpo para o anatômico, acho melhor ideia convencer desde já sua família a tê-lo como um doador de órgãos, pois também faltam doadores. E muitas vezes por uma questão de transporte e logística do sistema de saúde os órgãos de certos doadores são perdidos. Mas essa é uma história pra uma crônica sua. Garanto que se lhe acontecer de ter um órgão sendo transportado no seu táxi não será tão mais sinistro do que algumas outras histórias tuas, hehe
Um abraço e melhoras!

Flávio Lumertz disse...

Eu apoio a doação de órgãos e do corpo tbm. Pra que pagar para enterrar um corpo que ainda tem utilidade???

Cavalcante disse...

Gostei da ideia, mas poderiamos também fazer uma campanha pela doação dos orgãos. O que vocês acham?

CROCO E CIA disse...

Olá Mauro, sou nora e namorada de taxistas e não perco uma crônica tua. Achei muito legal de tua parte escrever sobre a doação do corpo e creio que devas escrever sobre doação de orgãos. Meu falecido avô teve seu corpo entregue a Ufrgs na mesma semana de sua morte, minha avó e minha mãe são doadoras de orgãos e do corpo e já eu e meus tios somos apenas doadores de orgãos. Toda nossa familia e os que nos cercam tem consiência disto e sabemos que irão realizar este desejo nosso! Espero que esta crônica faça com que as pessoas reflitam mais neste assunto.
Parabens!

Adriano de F. Trindade disse...

Mauro, além de falar com sua família, caso decidas seguir a valiosa sugestão acima dada, há ainda mais um recurso importante, e significativo para a doação de órgãos: colar um adesivo na própria carteira de identidade dizendo que optas por doá-los. Em caso de falecimento, quanto antes os órgãos forem destinados, menores são as chances de eles se perderem, e nem sempre a família está acessível, fazendo com que se perca um tempo precioso.

Mas mudando de assunto, pra quatro pontos deve ter sido um belo dum talho, hein? E se um colega lhe ofereceu ajuda, então a probabilidade é alta que não estivesses em casa se barbeando com uma navalha. A vantagem é que o bigode esconde!

Ótima crônica, tudo de bom pra ti!

Mauro Castro disse...

Por uma questão de espaço (limitado no jornal) acabei não comentando a forma como me cortei. Ocorreu da forma mais estabanada e patética possível: em um dia de muita chuva, tentei entrar no táxi correndo e bati com a quina da porta contra a cara...típico de um boca-aberta que nem eu. Eis toda a (lamentável) verdade.
Há braços!!

Clarice disse...

Ah, eu já dei em mim uma bela porrada na cara, por tentar fechar a porta quando a cabeça ainda não havia passado por ela.
Você está melhor?
Eu lembro daquele post e também lembro de ter contestado. Afinal será por isso que cortam a perna errada?
Eu espero não estar em bom estado quando bater as botas. hahaha!
Beijos

Anônimo disse...

Concordo com o Eduardo. Como você conseguiu esse corte? Fiquei curiosa.

Dalva M. Ferreira disse...

Táxi é um perigo!