quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Pensa numa travesti pobre. Paupérrima, nível moradora de rua. Alta, cabelão postiço bem comprido, meio desgrudando da cabeça, todo embaraçado, uma calça legging frouxa, suja, caindo pelas pernas, por baixo uma calcinha de couro preta toda torta, barba de três dias e maquiagem borrada. O quadro da dor. Ela trazia um fardo de cerveja Budweiser embaixo de um braço, uma bolsa a tiracolo e umas sacolas de supermercado penduradas na mão. Caminhava torta, meio de lado, um dos saltos quebrados. Essa foi a figura que chegou na Janela do meu táxi. Queria ir até o colégio Julinho. Não recuso corrida. Bora.
O primeiro empecilho foi a máscara. Ela não tinha. Por sorte, carrego algumas descartáveis. Coloca duas, pra garantir. Perguntou se eu aceitava cartão. Aceito. Liguei a maquininha, ela com um cartão super Gold Master, coisa fina. Queria passar por aproximação. Não rola, a máquina é antiga. Ela tentando igual, esfregando o cartão. Não passa, não adianta. Pedi pra inserir o cartão na máquina. Ela não quis. Não, não, não. Preferiu me pagar em dinheiro. Enfiou a mão na bunda e puxou um calhamaço de notas amarrotadas. Separou 20 pila e me deu. Toca, motora, que hoje eu tô grandona! Partiu.
Logo que saímos ela pediu que eu parasse numa farmácia. Queria comprar uns cremes, maquiagem, lubrificante anal. Sem chance. Sem paradas. Direto no colégio. Foi o combinado. Ai, taxista, para na farmácia, compro umas coisas pra ti, um desodorante, quer um desodorante? Passamos todas as farmácias direto. Era o colégio ou nada. Ela só jogando o cabelo, a guruvinha despregando da cabeça. Disse que já encomendou um cabelo novo, platinado, longo "tipo evangélica", que estava com mais de 400 Reais na bunda, que hoje era tudo com ela.
Já que não aceitei parar nas farmácias, ela me propôs que a levasse para um motel. Tô loko então! Nada de motel, sem parada nenhuma. Já a meio caminho do colégio Julinho ela me propôs encher o tanque do meu táxi, tinha gostado de mim, aceitei fazer a corrida, o que nenhum outro colega estava aceitando. NÃO. Insistiu no motel, queria virar aquelas Buds todas, encher a cara, pra não enlouquecer. E começou a gritar pela janela:
– Eu não quero enlouquecer! Eu não quero enlouquecer, não queeero enlouqueceeeer!
Já chegando no colégio, minha perturbada cliente contou porque só passava o cartão na "aproximação": Não sabia a senha. ROUBADO.
– Já passei no mercadinho, um fardo de Bud, uns bifes, dois maços de cigarro, vou baixar as prateleiras, tô patroa na aproximação, meu bem! Me deixa no Shopping João Pessoa. Vou na Renner comprar um Nike Air. Será que tem Nike Air na Renner, motora? NÃO QUERO ENLOUQUECER! PELO AMOR DE DEUS!!
Aproveitei que ela trocou o destino para o shopping e parei ao lado do ponto de táxi onde haviam três colegas estacionados. Poderiam me ajudar em caso de estresse. Nada. Minha passageira ainda jogou mais uma nota de 5 que estava caindo do soutien. Tava super minha amiga. Pegou o fardo de Bud, as sacolas, os bifes caindo no asfalto. Abaixou-se para juntar, deixando à mostra a calcinha de couro com um feicho enterrado na bunda cabeluda. Senhor, tende piedade. Se equilibrando em apenas um salto, começou a gritar para um morador de rua sentado na calçada oposta, fulano, fulano, nada do outro vir ajudar. Os colegas taxistas me olhando, fazendo sinal, perguntando se estava tudo bem. Tudo bem. Era cedo ainda, nem 8 da manhã de uma sexta-feira que promete ser longa.

2 comentários:

Eliana disse...

Que história! rss

Tudo pode acontecer numa manhã de sexta-feira! :D

Um abraço!

Dalva M. Ferreira disse...

Saravá, zifio! E parabéns pela atitude humana.