domingo, 16 de dezembro de 2018

A mulher que faz sinal para meu táxi segura dois travesseiros. Não tem malas, não parece estar indo viajar... apenas os travesseiros. A cliente abre a porta da frente. É jovem, magra, mas parece com dificuldade para embarcar. Examina a porta, o banco, parece medir os movimentos. Ela me endereça um sorriso amarelo, pede que eu tenha um pouco de paciência.
- A pressa é sua.
Minha cliente dispõe com cuidado os dois travesseiros sobre o assento do banco e inicia o "procedimento" de embarque. Geme. Parece sentir dor. Depois de se acomodar meio esticada, elevando o quadril, ela ordena que eu toque até o Posto de Saúde da Vila Cruzeiro. Emergência. Explica que lhe eclodiu um abscesso. Um furúnculo!
- Aonde?
- Não queira saber, senhor.
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- O senhor dirigindo táxi?
- Sim, sou taxista.
- Pensei que fosse escritor, até comprei um livro seu.
- Opa! E que tal? Gostou?
- Uma porcaria. O senhor me desculpe a franqueza.
- Ora, o que é isso, não tem problema.
- Na verdade, foi minha mulher que pediu pra comprar, ela é sua fã.
- Sério?
- Sim, ela assiste o programa da Fátima Bernardes, o senhor vive lá, não é?
- Fui uma vez.
- Pois então, minha mulher pediu seu livro, comprei, dei uma lida e, desculpa, achei uma bosta. Aquela coisa de relacionamento, auto ajuda pra namorados... fútil.
- Talvez o senhor esteja me confundindo...
- O senhor não é escritor?
- De certa forma...
- Como é mesmo o nome... Carpinter... não...
- Carpinejar?
- Isso aí! Bah, deixa pra lá, toca pro Centro.

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O homem apontou a mão em direção ao meu táxi segurando um latão de cerveja. A mão que lhe restara - não tinha o braço direito. Vestia uma camiseta com propaganda de supermercado, um boné surrado e jeans sujos. Humilde e visivelmente alcoolizado. Perguntou se poderia embarcar com a cerveja. Vila Cruzeiro. Vambora.
Recusou a ajuda para puxar o cinto. Contou que perdeu o braço em um acidente de moto e que segue "sentindo" o membro amputado como se ele tivesse sendo diariamente arrancado. Disse que sobrevive à base de doses cavalares de morfina e álcool.
Enquanto descíamos em direção à vila, ele puxou o dinheiro pra pagar a corrida. Reclamou que o banco não tinha notas grandes. Quatro mil em notas de vinte. Uma mascada enorme presa por um elástico. Separou uma nota e deixou o resto espalhado no colo. Bebeu o resto da cerveja e jogou o latão pela janela.
- Me larga no QG da costela.
- QG da costela?
- Não conhece o QG da costela, taxista?
- Bah, não conheço.
- Os taxistas comem direto alí, melhor churrasco da Cruzeiro. Vou tomar mais um gelo antes de ir pra casa.
Em frente ao QG da costela, ele pegou o troco da corrida, juntou à mascada maior e tentou desembarcar. Esqueceu de desatar o cinto, se atrapalhou, deixou o dinheiro cair, metade no assoalho do táxi, metade na rua! Um pessoal que bebia do lado de fora do QG da costela, que parecia conhecer o meu cliente, veio em seu socorro. Por sorte o chão estava molhado pela chuva, o dinheiro colado no chão, o pessoal do QG ajudando a juntar a grana, todos já meio no trago, meu passageiro catando as notas de 20 com a mão esquerda, pisando nas que saíram pra rua, um sufoco!
Parece mesmo que Deus protege os loucos e os bêbados. Depois de socar a massaroca de dinheiro no bolso, meu cliente saudou seus amigos de braço aberto. Prometeu pagar a rodada. A camaradagem talvez lhe atenue a dor do membro perdido.
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- taxista, eu acabei de colar minhas unhas, o senhor pega a carteira aqui na minha bolsa?
- Meu Deus, a senhora tem um revólver!
- Não se preocupe, está travado.
- Dá licença.
- Na parte de fora da carteira, deve ter R$50 aí.
- Só tem camisinha, aqui... quantas!
- No meu trabalho preciso muitas.
- Não diga.
- Essa é sabor caipirinha, o senhor já provou?
- Não. Não tem dinheiro aqui, amiga.
- Nessa parte de dentro, ali atrás do Santo Expedito... Não? Ué, poderia jurar que estava aí, olha bem, senhor, vê aí.
- Dá licença.. não, nada por aqui.
- O senhor me faça o favor, aqui no bolso, veja aqui no bolso de trás, deixa eu virar um pouco.
- Mas, eh...
- Veja aí, não? Nenhum dos dois?
- Uma conta de luz.
- O senhor viu como subiu a energia? um horror!
- Subiu, tá subindo tudo.
- Ai, senhor, me desculpa, acho que está aqui no sutien, tô lembrando, veja pra mim aqui.
- Quem sabe a unha já secou...
- Francesinha metalizada, olha, top, não é mesmo? Se eu estrago essa unha eu me mato.
- Dá licença então... Outra camisinha.
- Haha, eu nem lembrava dessa. Aqui, taxista, veja no bojo direito, por favor.
- Aqui está! Ufa! Que calor!
- Em quanto está a corrida, bah já subiu o valor!
- Subiu, tá subindo tudo.

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Mais uma passageira generosa:
- R$9,36?, arredonda pra nove e quarenta!
Brigado.
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O Batman começou a mexer no vidro do táxi, subir, descer, subir até a metade, terminar de fechar, descer... eu já estava a ponto de dar um basta naquilo quando a Cinderela mandou o Batman parar:
- Para, o taxista vai ficar bravo!
O Batman era do tipo que não aceita ordens, irritou-se, bateu com um travesseiro na cara da Cinderela, que começou a chorar. O choro estridente acordou o gremista, que até então meio que dormia, alheio à discussão. Quando o Batman quis voltar a mexer no vidro o gremista acionou uma espécie de pistola, que encheu o táxi de bolhas de sabão. A Cinderela, ainda chorando, xingou:
- Para com essas bolhas, vai atrapalhar o taxista!
Era choro, travesseiradas, bolhas de sabão, a Cinderela xingando o Batman, mandando o gremista parar, uma bagunça dentro do táxi, fui obrigado a pedir ajuda à mãe, que digitava tranquilamente o celular como se nada estivesse acontecendo.
- Desculpa, taxista, o senhor pode parar naquela creche à direita, por favor.
- Como é que a senhora suporta essa zona?
- Trigêmeos, depois de três anos, a gente relaxa, entrega pra Deus, só interfere quando estão a ponto de se matar.
- Entendi.
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O homem esticou uma das bengalas em direção ao meu táxi. Estava encostado em um poste. Abri a porta e ele jogou as bengalas para dentro do carro. Ao desencostar-se do poste, perdeu o equilíbrio. Só então notei que o homem parecia mal. Muito pálido, magro, cabelo ralo, sujo. Desci em socorro ao meu cliente que parecia de não ter forças para embarcar no táxi. Pedi licença, agarrei-o por baixo dos braços, tentei segurá-lo. Foi quando a sua camisa levantou e notei a arma na cintura.
- O senhor está armado!
Enquanto subíamos o morro, o homem tratou de me tranquilizar. Confessou que teve problemas com a polícia, que foi "alvejado" pelas costas, perdeu um pulmão, um rim, que passou a andar armado desde então. Segundo ele, a treta seria por não aceitar o pagamento de "bola" para uma banda podre da polícia. Coisa pouca, do jogo, que não se registra B.O. Tô ligado.
Deixei meu passageiro no alto do morro, na entrada de um beco estreito onde um homem com cara de poucos amigos já o esperava. Pagou um valor bem maior e dispensou minha ajuda. O homem que o aguardava pegou-o no colo sem cerimônia, bateu a porta do táxi com o calcanhar e sumiu beco adentro - pelo volume na cintura dava pra imaginar que também estava calçado com grosso calibre.
Cena comum no meio de uma tarde ensolarada de segunda-feira. Quem se importa?
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Olhar perdido, sem foco, corpo oscilando, o bêbado se ofende quando explico que ele não pode embarcar no táxi pela porta do motorista:
- O quê mais que não pode, taxista?

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Cinderelas modernas.
Segundos antes da meia-noite, a passageira interrompeu subitamente as carícias e deixou o táxi correndo, como se algum feitiço fosse se desfazer. Na pressa da fuga, deixou para trás um crock branco encardido número 41...
O taxista tem dúvidas se quer reencontrar a dona do calçado.

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Após deixar o casal no motel, voltei à luta. Já estava longe quando tocou um celular estranho no banco de trás do táxi.
-- Alô.
-- Maciel?? Quem está falando, esse não é o número do Maciel?
-- Esse telefone foi esquecido no meu táxi...
-- Puta que o pariu, meu marido, o Maciel, preciso falar com ele! Tô com o pedreiro aqui em casa, faltou material, meu marido tem que comprar mais massa corrida...
-- Dona, tenho que desligar, tô ao volante.
Minutos depois, nova ligação:
-- Alô, é o taxista?
-- Sim.
-- Pelo amor de Deus, moço, preciso falar com meu marido, tem como o sr. voltar onde deixou ele, devolver o telefone. Foi num asilo? Ele visitaria o pai dele hoje!
-- Asilo? Hãã, não sei, é que...
-- Maldito Maciel, o pedreiro tá aqui, sem fazer nada, e agora, moço?
Deixei o celular na portaria do motel para que fosse devolvido ao cliente do quarto 22. Um certo Maciel me deve essa mão.

Um comentário:

Dalva M. Ferreira disse...

Um primor, gostei de todas. Há braços.