domingo, 18 de novembro de 2018

Tiozinho careca, gravata frouxa, parecendo aflito, embarca no táxi. Higienópolis.
- Que dia, taxista, que dia. Sabe quando não dá nada certo?
- Sei.
- Recolheram meu carro. Deixei em local proibido, pensei que não ia demorar no banco. Não vendi a soja semana passada, o dólar caiu, perdi uma grana preta, renegociando financiamento com o gerente, demorou, guincharam o carro.
- Putz.
- Logo hoje, dia fértil da minha mulher.
- Dia fértil.
- Ovulação, entende. Hoje é o dia! Estamos ‘trabalhando’ uma gravidez. Ela tá me esperando. Não dá pro senhor ir mais depressa?
- O trânsito está um horror.
- Não estou com cabeça, sabe, só problemas, mas vamos lá, hoje é o dia. A tabelinha não mente, ovulação, ciclo, hoje é o dia. Ela está me mandando zap, o quarto já está pronto, aquecido, o Jorge já preparou tudo.
- Jorge?
- É o guru da minha mulher, sabe, ela é muito espiritualizada, acredita nessas coisas, o Jorge trabalha esse lado místico da coisa, prepara o quarto, o ambiente, descarrego, abre-caminho, incenso e coisa e tal, sabe. Ele está lá com minha mulher, já preparou tudo. Taxista, a gente tem que tentar de tudo, entende, já não sou uma criança, minha mulher é bem mais nova, quer um filho.
- Sei. E esse Jorge, o guru, ele tem muita experiência, viajou pro Tibet, sei lá, é um velho sábio, por certo.
- Na verdade, não. Ele trabalha como personal trainer, massoterapeuta, mas faz filosofia à noite, ensino a distância, e estuda essas ciências ocultas todas, sabe, o cara manja.
- Personal trainer.
- Sim, minha mulher é toda geração saúde, sabe, o Jorge cuida do corpo dela, faz parte do nosso projeto ‘gravidez’. Será que subindo a Goethe não seria mais rápido? O jorge já foi embora, minha mulher tá ansiosa. O senhor sabe como são as mulheres…
- Sim, eu sei.

________________

Passar o dia na rua, como o taxista passa, é estar exposto ao risco, ao susto, a realidade boxeando, batendo na cara, mostrando as armas. Acabo de presenciar uma cena forte, a luta pela vida, a morte a menos de dois metros de mim, nua e crua. Eu, ao volante do táxi, trânsito parado, pista da esquerda da avenida Ipiranga, assistindo a tudo.
No gramado que margeia o Arroio Dilúvio, o quero-quero retesado, pescoço imóvel, bico apontado, foco total. Menos de um segundo, duas bicadas certeiras e a minhoca já estava catada, uma sacudida de bico e já era, a luta diária pela sobrevivência, matar ou morrer, não era o dia daquela minhoca.

________________

Eu vinha meio distraído pela 3° Perimetral quando um Disco Voador, sem o menor aviso, resolve pousar na frente do meu táxi. Não deu seta, pisca alerta, nada, simplesmente pousou aquela tremenda nave, trancando a pista. Placa de Marte. Só podia ser!
Tirei pro lado, saí de trás, consegui mudar de faixa. Ao passar pelo Disco Voador, adivinha: o Marciano lá, com os três olhos grudados no smartphone, a cabeça nas nuvens. Putz, que raiva!
Depois, se reclama, se buzina, é porque é taxista fiasquento, blá, blá, blá. Gente, vamo se antenar!!

________________

Noventa e dois anos, a neta do lado de fora, puxando pelos braços, pediu que eu ajudasse, que empurrasse de dentro do táxi. A acusação de assédio sexual não foi nada. Doeu mesmo foi a bengalada na mão.
- Pervertido!

_______________

Largando uma corrida na porta de um grande hospital. Enquanto minha cliente desembarca, noto que um homem com camisola de paciente (aquelas abertas nas costas) vem caminhando em direção ao meu táxi. Ele está muito pálido (amarelo), segura um suporte de metal com uma bolsa de medicação pendurada, ligada ao seu braço (o que sobrou do seu braço, amputado abaixo do cotovelo). Pela janela, ele me pergunta se R$10 paga uma corrida até o prédio da Zero Hora (ele segura uma nota de 20 na mão).
- Bom, não exatamente, mas o senhor...
Nisso chegam correndo um guarda e um enfermeiro e seguram o homem pelo braço (o que restou inteiro). Forçam-no a voltar para o Interior do hospital, ele resiste, quer entrar no táxi, agarra-se à maçaneta, eles o impedem, pedem calma, o homem alega que vai apelar à imprensa, está indignado, mas acaba cedendo aos argumentos dos homens, aos poucos dá as costas para meu táxi (a bunda de fora) e começa a voltar, escoltado pelo segurança e pelo enfermeiro, que o ajudam com o suporte metálico.
O pequeno aglomerado de pessoas que assistia à cena abre passagem e eu parto rumo à próxima corrida. C' est la vie.
_______________

Sabe você que pegou meu táxi hoje pela manhã, bem cedo, com cara amarrotada, voz gutural, dando a entender que teve uma noite péssima, em péssima companhia, bebida péssima, que perdeu seu tempo tentando fazer dar certo algo que, desde o início, estava na cara que não ia rolar? Sabe? Você que me confessou que não tem talento para escolher namorados, que investe nas pessoas erradas, que detesta amanhecer em um táxi admitindo suas cagadas, mas disse que é o que sempre acaba acontecendo? Lembra? Lembra de ter me convidado para acompanhá-lo em uma última dose, pra, quem sabe, esticar o papo em um "lugar sossegado", que, apesar de tudo, estava cheio de amor pra dar? Lembra de mim?
Pois é, sou aquele taxista. Desculpa o mau jeito, a resposta seca, a aparente falta de sensibilidade com os tetos alheios. É que eu também não tive uma noite das melhores e tudo o que eu queria àquela hora da manhã era fazer uma primeira corrida decente, receber pelo trabalho e dar continuidade ao meu dia, para que, quem sabe, as coisas também melhorassem pro meu lado.
Foi mal.
_______________

- Eu não posso chegar atrasado! Descendo por dentro da vila não é mais rápido?
- É perigoso. O senhor quer morrer?
- Taxista, o senhor entregando meu corpo no meu trabalho antes das 9 tudo bem. Não posso é perder o emprego.
_______________

Atendo o telefone do ponto. Do outro lado da linha, a voz de uma idosa:
- O taxista Argemiro está?
- Argemiro?
- Sim, o que trabalha em um Del Rey.
- Hã?
- Sabe o que é? Eu sofro da coluna, sabe, os táxis Fuscas são muito desconfortáveis.
- Fuscas.
- Pois é, o Del Rey do seu Argemiro é macio, não me maltrata o bico-de-papagaio.
- Entendo. É que o seu Argemiro não está trabalhando...
- Sem querer ofender. O senhor teria algum táxi para mandar que não seja Fusca? Eu preciso para domingo à tarde. Quero levar minha filhinha na matinê do Cine Baltimore.
- É que... bom... a senhora não quer ligar mais tarde? Aposto que o seu Argemiro terá prazer em atendê-la.
- Está bem. Diga a ele que a Isolda ligou.
- Pois não.
________________

Prazer em tempos de Facebook. Funciona assim:
Eu posto uma história aqui. Feito isso, coloco o celular (com o vibrador ligado) no bolso traseiro da minha calça. Então é só esperar os comentários.
Digamos que sou literalmente "tocado" pelo seu comentário (crítica ou elogio, tanto faz). É mais que uma massagem no ego. É físico - imagine eu, dirigindo meu táxi, sendo bolinando por sua observação!
Comenta aí. Me faz essa carícia.
_______________

Rua Mariante, sinal fechado, chuva torrencial. Para ao lado do meu táxi um jeep do exército, pintura camuflada, machado preso à lataria, a capota de lona sendo castigada pelo aguaceiro. Um soldado levanta a sanefa de plástico do veículo militar e faz sinal para que eu abra a janela. Precisa de informação. Abro uma fresta.
- Taxista, a Liberdade, a Liberdade! - ele grita.
- A liberdade?
- A liberdade? Está próxima? - a urgência no olhar castigado pela chuva.
- A liberdade está distante, amigo!
- Não é aqui pra frente?
- Liberdade é uma utopia!
- O quê? Não entendi!
- Não existe liberdade no mundo moderno!
- A Liberdade, cara! Já passou? A rua, taxista, a rua!
- Procure dentro de você, amigo! A verdadeira liberdade está dentro de nós mesmos!
Nesse exato momento cai um raio num transformador de energia, o semáforo abre e o diálogo, que já estava difícil devido à tormenta, fica por aí. Uma pena. Gostaria de ter indicado uns livros de auto ajuda para aquele soldado. Ele parecia perdido.
_____________

Casal de idosos saindo de uma clínica popular. O velho está mal. Muito magro, pálido, barba por fazer. Veste um sobretudo pesado que dificulta ainda mais seus movimentos já lentos. A velha o ajuda a embarcar e senta no banco de trás.
- Taxista, se o senhor puder ir rápido. Meu velho tem incontinência.
- Incontinência? Incontinência urinária?
- Sim. E a número 2 também.
- Número dois!
- Mas é só quando ele tosse.
O vovô, sentado na frente, parecia divertir-se, só admirava a paisagem.
- Ele é praticamente surdo.
- Mas ele está de fralda?
- Não admite usar fralda. É vaidoso.
- Teimoso, a senhora quer dizer.
Nunca o Jardim Humaitá foi tão longe. Meu táxi deu 140 na avenida Legalidade. Afinal, a corrida transcorreu sem tosse. Mesmo ao fazer força para desembarcar, meu bravo passageirinho segurou firme. Antes de partir amparado pela patrôa, brindou-me com um sorriso vitorioso e um aceno.
- Tenha um bom dia!
_____________

Loira, jaqueta de couro, avenida João Pessoa, 15:00h. A passageira senta no banco traseiro e, me encarando pelo retrovisor, fala:
- Tio, seguinte: eu preciso ir até a Vila Tuca e depois voltar aqui.
- Pra...
- Eu vou buscar droga.
- Não.
Desceu sem comentários. Sincera, objetiva e sem tempo a perder. Não tivesse me chamado de tio, teria até lhe desejado sorte.

Um comentário:

cRiPpLe_rOoStEr a.k.a. Kamikaze disse...

Zé-droguinha chamando de "tio" é dose mesmo.