sábado, 20 de janeiro de 2024

Dia anoitecendo, eu largando uma corrida no fundo apocalíptico da Restinga Velha, prédios em ruínas, esqueletos de carros esquecidos nas ruas, um funk tocando ao longe. A corrida até lá já foi tensa, com o passageiro dormindo a viagem toda no banco traseiro, a dúvida se ele teria dinheiro pra me pagar no final, mas eu estava aliviado: o homem, gente boa, reciclador, puxador de samba no carnaval, estava acertando a corrida e jogando conversa fora. 

Foi quando apareceu o homem.

Enquanto meu passageiro se despedia, se ajeitava pra desembarcar, eu de olho no homem ao lado do táxi. Ele esperava desocupar, precisava uma corrida, com certeza, fazia-me sinais de positivo em movimentos rápidos, sem fixar o olhar nos meus olhos, suando muito, como se tivesse chegado ali correndo, o dia quente, mas já anoitecendo, sem motivo pra tanto suor, o cara mal apessoado, mal vestido, um boné torto, uma mochila encardida pendurada em um dos ombros, parecendo ansioso (drogado?), eu já pensando num desdobre qualquer pra não deixá-lo embarcar no meu táxi. O passageiro puxador de samba desceu e o homem me abordou. Segurou a porta, não deixou fechar, precisava de táxi. Tenso, suando, me pediu que aceitasse fazer sua corrida.

– Pelamor, pae, me leva, ae, tô vindo lá do Barro Vermelho, ninguém quer me levar, pae, me leva ae, preciso ir lá atrás do Presídio Central, pegar umas roupas pra minha mãe que tá internada com covid, é jogo rápido, pae, tranquilão, pago o senhor no dinheiro, ninguém quer me levar, sou honesto, pae, me leva ae, te dou 50 no dinheiro...

Pô, cinquenta conto, eu precisando mesmo voltar pro Partenon, o cara me abrindo o jogo, achei que valia a pena o risco. Mesmo com uma enorme quantidade de pulgas atrás da orelha, resolvi aceitar a missão. Bora ver qualé.

A corrida foi sem sobressaltos, o cara quietão, mochila no assoalho, entre os pés. Confirmou a história da mãe no hospital e não quis mais conversa. Só o barulho dos pneus no asfalto, a noite caindo e a sensação de que eu seria assaltado aumentando. Desliguei o ar e abri os vidros, na esperança que a brisa da noite segurasse a dor de cabeça que crescia na minha nuca e subia em direção aos olhos. 

Corta por dentro da Glória, pega a Intendente, bairro Aparício Borges, aquele labirinto atrás do Presídio, entra aqui, dobra ali, sobe a Menina Elvira, sobe mais um pouco, noite nublada, abafada, sem lua, ruelas mal iluminadas. O cara firme, a mochila entre os pés, eu controlando com o canto do olho, só esperando o anúncio do assalto, até que chegamos. 

– Para por aqui, pae, na saída do beco, vou ali pegar o dinheiro, só um minutinho, jogo rapidão.

Ele abriu a porta traseira, pôs um dos pés pra fora do táxi, quando fez o jeito de desembarcar eu segurei a mochila - depois que entrasse naquele beco, nunca mais que eu acharia o maluco. Se ele estava pensando em fugir, seria sem a mochila. A mochila fica, brother.

— A mochila, pae, preciso da mochila.
— A mochila fica comigo, eu espero tu voltar com a grana, não te preocupa, magrão.
— Péra, tio, tenho que pegar o ferro, na mochila.
— Ferro? Que ferro, meu, tá louco?
— Sereno, pae, pode ficar com a mochila, só vou pegar o ferro, pra buscar o dinheiro, sereno, péra.

O cara abriu a mochila e puxou um revólver! Agarrando pelo tambor, com a mão toda, um enorme trezoitão cromado, um tremendo dum ferro! Caralho! Mó taquicardia, eu em pânico e o maluco me tranquilizando. Suave, suave, vou ali e já volto. Eu segurando a mochila e o cara desembarcando, nem sinal de me assaltar, só saindo, numa boa, pedindo pra esperar um minuto, tinha umas contas pra acertar, voltaria com meu dinheiro e desceu, emburacou na viela escura!

Eu só aguardando os tiros. Já tarde da noite, sem viva alma na rua. Eu com a mochila, a porta do táxi ainda aberta, meio sem saber o que fazer. Que merda! E agora! Tô nesse impasse, por uma fração de tempo que não sei precisar, a cabeça girando, cinco minutos, meia hora, sei lá, quando o cara surge de volta. Passa pela frente do táxi, a arma agora segura às ganhas, mas voltada pro chão. Passou por mim, pediu que eu fosse manobrando o carro, disse que ia chamar o "patrão", só um minuto, levaria o patrão junto, rapidão. Nem um minuto depois, passou de novo em direção ao beco. Agora acompanhado do que parecia ser o patrão... Uma mulher! Gorda, peitões, chinelos, camiseta do Grêmio de umas 10 temporadas atrás: A patroa do tráfico!

Dei um jeito de manobrar o táxi na viela estreita, íngreme, os barrancos ameaçando despencar, meu reino por um sensor de estacionamento. Estou apontando o táxi morro abaixo quando surge de volta o magrão. Dinheiro na mão! Uma nota de 50 balançando em minha direção! Feito!

Agradeceu, sincero, acreditei nele, me apertou a mão, jurou que taxista não sofre pênalti naquela quebrada. É nóis! Despediu-se, a arma apontada pra baixo, já ia largando fora, tive que lembrá-lo da mochila! Podecrê, pae, tudo firmeza, suave, tranquilão...

A noite pesada de umidade, a cidade lá embaixo vibrando como uma miragem no calor, as luzes do Presídio Central. Dei partida e empreendi a descida na lenta, virando roda, o táxi subitamente mais leve, macio, aquela sensação boa de estar voltando aos poucos à minha realidade. Por pior que ela pareça.

Nenhum comentário: