quinta-feira, 30 de setembro de 2021

 Isso a Globo não mostra

Seu Souza, oitenta e muitos anos, indo fazer a dose de reforço da vacina. Ele me confessa que está preocupado. Diz que teve reações adversas nas doses anteriores, a segunda mais forte, quase precisou baixar o hospital, febre, dor muito forte no corpo. Eu procuro animá-lo, vai ficar tudo bem, seu Souza. Estaciono o táxi em frente ao Postinho do Morro Santana. Observo meu passageiro passar direto pela fila, ele tem prioridade. Aumento o som do rádio, relaxo e espero. Espero. Espero. Eu já estava estranhando a demora do seu Souza em voltar quando percebo uma movimentação estranha na porta do Postinho. Gente se afastando, um falatório, meio que um princípio de tumulto, desço pra conferir o que está rolando.
"Tem alguém morrendo lá dentro!", me informa um homem que estava na fila, fila essa que, agora, se transformou em aglomeração na porta da Unidade Básica de Saúde. Forço a passagem, deve ser o seu Souza! Consigo ver o interior do posto de saúde, lá dentro, médicos enfermeiros, todos em pânico! Um homem, que deve ser o segurança, está ao telefone ligando para a polícia. A polícia! Ele pede que mandem viaturas (no plural), precisam de ajuda, um idoso está tendo uma reação horrorosa!
Eu conheço o homem, o paciente, o passageiro, é o seu Souza! Forço a passagem, eu estou com ele! Uma auxiliar de enfermagem toda escabelada me conduz até a sala onde seu Souza está tendo a "reação". A cena é surreal. Um jovem de jaleco branco, médico, está acuado no canto da pequena sala, outro atrás da maca parece se proteger segurando uma cadeira, eles gritam com o homem que esta no centro do ambiente, deitado no chão, se contorcendo. Consigo identificar o seu Souza. Ou o que sobrou dele! O rosto transformado, ainda se espichando, a cabeça encolhendo, os braços e pernas diminuindo, os membros se atrofiando enquanto, na parte posterior do corpo, onde havia a bunda do seu Souza, cresce uma protuberância, uma excrescência, uma, uma... Cauda! A calça, por fim, cede, o tecido rasga e pode-se ver perfeitamente o rabo surgindo horroroso, ainda gosmento, viscoso, resultando da metamorfose pavorosa, mas já perfeitamente delineado: um rabo de JACARÉ!
O postinho em polvorosa, gente berrando, outros desmaiando, fanático gritando mito, mito, Bolsonaro avisou! Seu Souza estrebuchando no chão, um médico jogando a cadeira sobre o animal que horas antes era meu passageiro, outro batendo com a bengala do seu Souza na cabeça do jacaré, maior tumulto. É quando chega um grupo de homens com macacões laranja, tipo bombeiros, com capacetes de proteção e tubos de oxigênio nas costas. Eles afastam as pessoas com vigor desproporcional, têm pressa, parecem determinados a acabar com a função. Um dos homens joga uma rede sobre o jacaré, enquanto outros dois cobrem o bicho com uma lona preta. Embrulham tudo, ensacam o animal, recolhem e tiram de cena, sob o olhar estupefato da audiência. Ninguém sabe ao certo o que está acontecendo. Noto em um canto da recepção um homem de terno preto e óculos escuros. Ele está sentado de pernas cruzadas, batendo a tampa de uma caneta Bic no tampo de vidro da mesa. Toc, toc, toc. O homem parece indiferente a toda a confusão. Toc, toc, toc.
Toc, toc, toc. Acordo com seu Souza batendo com a ponta da bengala no vidro do meu táxi. Me recomponho, seco o fio de baba que escorria no canto da boca. Meu passageirinho embarca feliz, visivelmente emocionado. Conta que ganhou um bombom, que a equipe de enfermagem está oferecendo aos idosos da terceira dose. Lembra da sua mulher, que ficou pelo caminho, vítima da Covid. Agradece por tê-lo esperado, me oferece o bombom, que eu aceito enquanto retornamos de volta ao ponto inicial. Um chocolate ajuda a manter o pique, zomba seu Souza, que me pegou cochilando.
Preciso colocar o sono em dia.

4 comentários:

Renato M, disse...


Querido Mauro, quanto tempo fiquei sem ler suas talentosas crônicas e contos! Bom estar de volta nessa acachapante historia Kafkaeska!

Eliana disse...

Meu deus do céu, Mauro! hahahahahaha

Até a parte em que seu Souza estava deitado no chão, acreditei numa possível realidade na cena. Mas depois que a cauda cresceu eu me assustei!

Que história! E como estamos, não é mesmo? Até em sonhos somos "perseguidos" pelo coiso! Cruzes!

Ainda bem que você acordou com o seu Souza bem e vacinado batendo no vidro do carro!

Sinto pela esposa dele que não teve tempo de se imunizar contra essa doença infeliz.

Um abraço!

Dalva M. Ferreira disse...

600 mil mortos. O bicho é feio!

Dalva M. Ferreira disse...

Falar nisso, cadê que vc vem no meu blog? Tô esperando, de braços abertos!