domingo, 27 de maio de 2018

Meu passageiro era uma metralhadora giratória:
- Tem troco pra 50, taxista? A gente troca, o dinheiro evapora, mas vai ter que durar até o fim do mês, meu cunhado quer me dar aumento pelo índice não sei qual, disse que é a lei, pensa que eu sou burro, o supermercado ninguém controla, aumenta tudo, meu cunhado sabe, ele vai no Zaffari toda hora, não faz rancho, diz que estraga as coisas, não estraga nada, bota na gaveta e dura o mês todo, o super ninguém controla, mas o meu aumento é uma merreca, é o que dá trabalhar com parente, meu cunhado trata melhor os cachorros dele do que os empregados, meu cachorro não tem mais ração faz uma semana, tá catando nos lixos dos vizinhos, sorte que o mês tá acabando, sobrou esse cinquentão e olhe lá, cartão não uso mais, só da farmácia e da Riachuelo, se precisar comprar um calçado, sei lá, mas acabei com os cartões, tu não paga o boleto, não tem perdão, paguei 40 de juro mês passado, minha filha que me ajudou, ela trabalha como uma condenada pra fazer as vontades do filho, maconheiro sem vergonha, disse que quer ser skatista, vive no Parque Harmonia, fumando maconha, pensa que eu não sei, roubou o carro da minha filha, sem carteira, prenderam o carro, eu não tenho mais carro, não quero, só pra pagar IPVA, aquela merda, pifou o arranque, eu vivia empurrando, não quero mais carro, vou de ônibus pra praia, sento lá, banco reclinável, acordo na praia, tenho uma casinha no Quintão, duas quadras da rodoviária, mês passado me arrombaram a porta, roubaram o botijão de gás, os safados, pra trocar por droga, minha mulher, quer que eu venda a casa, ela é costureira, faz reforma, bainha a 5 Reais, ninguém quer pagar, o conserto da máquina custa os olhos da cara, mas a bainha os bacanas acham caro, ela só trabalha pra burguês, burguês é tudo mão de vaca, uma bainha tinha que cobrar uns 30, quer, quer, azar, meu cunhado não quer dar aumento, o índice, o índice, que se dane o índice, tô fazendo uns bicos, cortando grama, tenho uma máquina, corto uma graminha, varro tudo, deixo bonito...
- R$10.
- O senhor me dê duas de vinte, não troque muito, a gente troca, evapora.
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Orgulhava-se de ter sido considerada a vedete com as pernas mais bem torneadas do teatro de revista. Casou-se com um rico empresário gaúcho e veio morar em Porto Alegre. Quando pegou meu táxi, já vivia de lembranças, esquecida em um asilo de luxo da Zona Sul. Inspirada pela claridade azulada do outono gaúcho, acabou desviando a corrida, que inicialmente a levaria para uma consulta médica. Acabamos às margens do oceano Atlântico, praia de Torres, onde minha passageira caminhou por um bom tempo pelas franjas salgadas do mar. A corrida dos sonhos de qualquer taxista, que acabou se repetindo por mais duas vezes. O longo caminho rumo ao litoral, recheado de lembranças teatrais, a esperança na capacidade de cura da água salgada, mas os problemas de circulação piorando, a dificuldade cada vez maior de caminhar.
Hoje, chamaram um táxi no asilo, perguntei à recepcionista pela minha antiga passageira. Soube que morreu há alguns anos, vítima de trombose, as duas pernas amputadas - as pernas que ajudaram a fazer sua fama.
A manhã, que começou límpida, foi aos poucos se acinzentado... É o outono gaúcho, é a vida.
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Sabe aquela bêbada que não interage? As pálpebras pela metade, parada ao lado do táxi, me olhando, eu ao volante, esperando que ela entrasse ou desocupasse a porta. Quando finalmente embarcou, apenas deu o destino com voz pastosa e se calou. Tentei puxar assunto, mas não, uma lápide, só o olhar de peixe morto mirando o infinito e uma leve oscilação de pescoço. Deixa quieto.
Fim da corrida, subida da Luiz de Camões. Depois de puxar a grana de uma maçaroca de notas, minha cliente enfiou o troco amassado no bolso e iniciou o procedimento de saída. A inclinação da rua foi um problema. Logo que soltou a mão do táxi, a mulher parece que perdeu o chão. Foi trocando pernas ladeira abaixo, lutando contra a gravidade, manejando os braços o equilíbrio faltando, ganhando velocidade. Ainda cogitei pular do táxi, ampará-la, mas ela já ia em desabalada carreira lomba abaixo, restou-me ficar na torcida.
Dizem que Deus protege bêbados, loucos e crianças. No caso, Deus materializou-se naquela calçada na forma de um brigadiano, desse que patrulham a cidade de bicicleta. O policial militar aparou a mulher! Cena de futebol americano, os corpos se chocando, a bicicleta, a ladeira, embolaram-se, pernas, braços, a velocidade diminuindo, upa, upa, arrasta, a luta contra o tombo iminente e, por fim, o abraço firme. Haaaa!
Vida que segue.
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Depois de metade da corrida em silêncio, o passageiro, do nada, me sai com essa:
- Meu órgão tá em festa!
Depois ele me explicou que o "órgão", no caso, tratava-se da repartição pública onde ele trabalha, que está completando 50 anos... Pô, baita susto!
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- É só um baseadinho, taxista, não dá nada.
- Tô ligado, mas não dá pra fumar no táxi.
- Podicrê.
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Já contei aqui a história da minha passageira idosa que se reaproximou do neto desde que o rapaz plantou um pé de maconha no quintal da casa dela - as visitas do garoto passaram a ser frequentes, ela fingindo que não conhece maconha, ele fingindo que ama a avó. Depois de muito tempo, ela voltou a pegar meu táxi. Perguntei como está a situação.
- As visitas continuam. Entre uma xícara e outra de chá, ele disfarça e vai lá colher a erva, mas sinto que estou perdendo meu neto.
- Para a droga?
- Para o smartphone. As visitas eram como uma rajada de ar fresco, tanta conversa, tantas novidades. Agora a tela do celular captura a atenção dele, é como um muro entre nós, restou quase um monólogo. Que vício desgracado!
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Atenção você que apanhou (muito) da sua mulher dentro do meu táxi, agora pela manhã. Tenho duas coisas para lhe dizer:
1 - você mereceu cada tapa, cada bordoada, cada cusparada que levou dela.
2 - Ficou caído no assoalho do táxi a lente que deve estar faltando no seu óculos. Procure-me (ou não).

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