domingo, 15 de fevereiro de 2015

Fantasmas e bueiros

Tenho péssima memória. Passo vergonha às vezes, não lembro de amigos, datas importantes, nomes de músicas. Por outro lado, minha cabeça registra certas coisas e não esquece mais. Coisas bobas, antigas, volta e meia voltam à tona como flashes cristalinos do passado.

Acontece, por exemplo, toda vez que desço a lomba da Ramiro Barcelos. Vinte e tantos anos atrás, quando recém tinha entrado na praça, um colega me alertou sobre as tampas de bueiros desniveladas na descida da Ramiro. Vinte e tantos anos passados, toda vez que aponto o para-choque do táxi rumo àquela ladeira, lembro daquele antigo alerta. Sempre.

Hoje, peguei uma passageira simpática, adolescente, sotaque da fronteira. Quando entramos na rua que ela tinha indicado como destino, me veio à mente a notícia do operário que morreu quando construíam um prédio naquela rua. Sempre que passo por ali, lembro daquela morte, daquela notícia. Sempre.

Por coincidência, minha jovem passageira pediu que parasse justo na frente daquele prédio. Enquanto fazia o troco, perguntei se ela conhecia a história fatídica daquela construção. Ela não sabia do caso, ficou curiosa, pediu que eu contasse em detalhes. Detalhes mórbidos. O operário caiu em um buraco de estaqueamento, agonizou por horas, segundo as notícias. O corpo só conseguiu ser retirado muito tempo depois.

Não sei se foi o enfoque teatral que imprimi ao relato, o fato é que a menina ficou impressionada. Depois de olhar para o prédio, pensativa, pediu que eu ligasse novamente o taxímetro e retornasse. A garota explicou que estava alugando um apartamento naquele prédio, mas desde a primeira visita, sentia uma energia negativa subindo do piso, uma inexplicável sensação de desconforto. Agora tudo fazia sentido para ela. Decidiu ir à imobiliária desistir da locação.

Certas memórias ficariam melhores soterradas no passado. Outras, não. As tampas de bueiros da Ramiro Barcelos continuam lá, ainda desniveladas e perigosas.

Um comentário:

Ricardo Mainieri disse...

Vai ver que a moça era sensitiva, tinha mediunidade e percebeu, meio desordenadamente, as energias do local. Prestaste um excelente serviço aos vivos e ao morto que deve estar, ainda, por lá sem perceber que já está em outra dimensão.