domingo, 21 de dezembro de 2014

Teoria dos velórios

Quando um passageiro idoso deixa de ligar para o ponto, os taxistas logo pensam o pior. Em geral, acontece assim: as ligações vão ficando cada vez mais espaçadas até que ninguém mais chama naquele endereço, e um dia você é informado que o velhinho morreu. Por isso, fiquei feliz ao escutar a voz trêmula ao telefone solicitando um táxi. Seu Martins.

O velho paletó um pouco solto no corpo emagrecido, a cinta com furos extras, a bengala de bambu. Fiquei feliz ao ver que seu Martins ainda está firme na paçoca. Devolveu-me um sorriso quando o cumprimentei pelo nome. Acomodou-se no táxi e pediu que tocasse para o Cemitério João XXIII.

O peso dos mais de 90 anos arquearam as costas do seu Martins. Viúvo há algum tempo, os filhos morando no exterior, um problema nos olhos que está lhe encurtando o interesse pelo mundo. Apesar de tudo, o velhinho mantém a cabeça lúcida, fala até com certo vigor, acentuando os verbos com batidas de bengala no assoalho do táxi. Engenheiro por formação, nesta última corrida meu passageiro revelou-se um filósofo: “Os velórios definem o homem”.

Segundo meu idoso cliente, você sabe que entrou na vida adulta quando comparece ao primeiro velório - crianças são poupadas deste ritual mórbido. Você sabe que está ficando velho quando se acostuma com os velórios - já sabe o que dizer aos parentes e tal. Por fim, você sabe que está muito velho quando só sai de casa para comparecer a algum velório.

Como o velório que seu Martins estava indo era do seu último amigo vivo, a conclusão que ele chegou era inevitável. Sua próxima saída de casa será, muito provavelmente, para sua própria “cerimônia de despedida”. Será por ele que as velas se acenderão.

Ao desembarcar no “Condomínio dos Pés Juntos”, seu Martins perguntou seu eu já sei o que dizer aos parentes dos mortos. Quando disse que ainda fico sem jeito em velórios, ele deu dois tapinhas na minha perna e sorriu.

-- Melhor assim, meu amigo taxista.

2 comentários:

ricardo garopaba blauth disse...

belíssimo texto amigão...........

"melhor assim, meu amigo taxista"

Anônimo disse...

Lindo texto!
Espero a semana toda para ler um novo post aqui... e sempre vale a pena!