terça-feira, 19 de setembro de 2023

 Largando uma senhorinha no fundo da Maria Degolada, desci o que pude na vila, pra ela não se molhar muito. Um dilúvio desabando, o dia virou noite, um horror. A tiazinha pagou a corrida e sumiu na escuridão da quebrada. Eu manobrando o táxi, só pensando em sair dali, a chuvarada transbordando os arroios, os postes tortos ameaçando cair com o vento, granizo, zona de alta periculosidade... Foi quando surgiu de um beco um magrão fazendo sinal pra mim. Meio encolhido, protegendo-se da chuva guasqueada, do vento, um magrão volumoso, esquisito, mal iluminado pelos faróis do táxi. Impossível vizualizar direito. Eu ainda meio trancado na ruela da Degolada, não podendo nem acelerar pra fazer de conta que não vi o boneco. Bah, vou ser assaltado, alguma coisa me disse. Ferrou. O magrão mal vestido, bermuda, um pinto de molhado... Destravei a porta. Fazer o que. Assaltado, certo.

Ele embarcou se espanejando, desculpando-se por molhar todo o táxi. Tudo bem. Pediu que o levasse até a Bonja, vila Bom Jesus. Eita, outra zona complicada, ferrou. Juro que fiz as contas dos assaltados. Pelas minhas contas, já mais de 5 anos do último atraque. Nenhum taxista sobrevive tanto tempo sem perder pros vagabundos. Ferrou.
Vamo lá. Limpador de parabrisa no máximo, dobra aqui, cuida os alagamentos, cruza com cuidado. O magrão meio quieto, dei um jeito de puxar assunto. E essa chuva, hein? Aproveitei pra filmar o maluco pelo retrovisor. Se ele vai me assaltar, quero ver bem o 3x4 do cara. Foi aí que eu vi os brincos. Dois brincos. Um em cada orelha! Rapaz, foi nesse exato momento que eu percebi que estava tudo bem. Meu espírito se desarmou. Um cara que usa brinco, dois brincos, é um cara do bem. Tem que ser. E não deu outra.
Engatamos uma conversa. O magrão é colorado doente. Fechou. Torcida organizada. Disse que a irmã dele joga no time feminino do Inter. A guria é promessa. Vai estourar nos profissionais. O cara é encarregado de estoque em um grande supermercado, super gente-boa, descontraiu geral o ambiente no táxi. Até a chuva amainou. Bah, e eu pensando mal do magrão. Tri preconceituoso, é foda. Só porque o cara é pobre, só porque tá na perifa. Preconceito.
Baixamos na Bonja, pros lado do mato Sampaio, desce aqui, entra ali. Tudo meio alagado. Pode descer, não dá nada. Bequinho apertado. Tem espaço pra manobrar lá no fundo? Aqui mora minha irmã, a que joga bola. Ah, tá. Desce mais embaixo. Bah, não tem saída. Só mais um pouco, a chuva recomeçando, o táxi meio que atolando. Tá bom aqui. O magrão foi curto e grosso:
— Não quero nem o teu dinheiro, motora. Fica com esse troco de merd∆ pra continuar trabalhando. Passa só esse teu celular bacana, aí. Preciso dele pra pagar umas dividas. Vou descer, entrar naquele beco e tu vai vazar. De ré. Mas VAZA! Não olha pra trás. Some daqui se não eu te furo, taxista filho da put∆!
Depois de 5 anos, perdi. Recomeçando a contagem. Estamos trabalhando a zero dias sem assaltado.

Um comentário:

Anônimo disse...

Adair de Gravataí. Bah, lendo a história jurei q não ia ter assalto, mas no final, o brabo é ouvir as ofensas, mas Deus é bom, não aconteceu nada com o Sr. Mauro