domingo, 4 de março de 2018

Depois de um longo dia de trabalho, o taxista Gardel já ia recolhendo em direção à casa. Em frente a um hipermercado, dois jovens fazendo sinal, sacolas de compras nas mãos. Vamos lá, uma última corrida. Não se deixa dois trabalhadores a uma hora dessas na rua, correndo o risco de serem assaltados e perderem suas mercadorias.
Noite, os jovens iam para uma zona complicada, perifería profunda, zona de disputa de tráfico, só mesmo a solidariedade entre trabalhadores levava Gardel a aceitar uma corrida daquelas.
Assaltado, ameaçado de morte, chamado de vagabundo, tapas na cara, todo o dinheiro levado, celular, relógio, chave do táxi. Fizeram a limpa e sumiram na escuridão. Engolido o susto e a humilhação, Gardel lembrou das compras no porta-malas. Os assaltantes haviam esquecido! Mas foi uma alegria efêmera, um sopro de consolo que não durou um segundo. Mesmo antes de abrir a porta traseira, o taxista já adivinhava o pior.
Lixo reciclável.
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Passageiro estrangeiro, sotaque carregado, presidente de uma grande multinacional alemã, falando maravilhas do seu país de origem, primeiro mundo, para onde ele sonha todos os dias em voltar. Perguntei se é o emprego que o prende ao Brasil. Com ar desolado, ele respondeu que não, que é algo maior que isso:
- O amor por uma gaúcha.
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Ao saber que sou amante das letras (e percebendo minha pouca fé), a passageirinha, fofa, obrigou-me a ficar com uma Bíblia de presente. Aceitei, por educação, afinal ela tinha 102 anos! (a passageira). A Bíblia, no caso, é uma edição bem mais recente.
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- Taxista, me leve lá naquela rua, do poeta aquele, saudade da minha terra, a rua que sobe da Goethe, da aurora da minha vida, o poeta, sabe?, como é mesmo?, Da minha infância querida, o nome da rua, do poeta, que sobe pro IPA, naquelas tardes fagueiras à sombra das bananeiras, do poema, eu decorei no colégio, sabia de cor, o nome do poeta, esqueci...
- Casemiro de Abreu?
- Isso! Rua Casemiro de Abreu, por favor.
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A figura na calçada da Bento Gonçalves não combinava muito com a claridade da manhã. O dia começou com uma travesti fazendo sinal para meu táxi, dinheiro na mão, gesto típico de quem já foi rejeitada por outros taxistas. Como quem diz: posso não ser a passageira dos seus sonhos, meu bem, mas tenho dinheiro para pagar a corrida. Os primeiros raios da manhã iluminavam uma figura esguia, pernas longuíssimas, shortinho jeans minúsculo, enterrado, as tiras da calcinha aparecendo no quadril, top rosa choque, salto alto vertiginoso e cabelão desgrenhado. Além da nota de 20 balançando em minha direção, ela tinha um bichinho no colo. Um hamster, acreditem, um ratinho malhado. Parei, óbvio.
Imagina um cheiro forte de perfume. Sentou na frente, educadíssima "Vila Cachorro Sentado, por favor", a maquiagem borrada, perguntei se estava tudo bem, "melhor impossível, beijei na boca, dancei muito", saindo de uma festa "Psy", música eletrônica, tentando retomar o sentido, "fraca pra bira", estava saindo de uma padaria onde tinha tomado um copão de café preto. Maquiadora, performer, massoterapeuta, explicou que ganhou o hamster do dono da festa que não queria mais o animal "será que dou queijo pra ele?".
A discrição da minha passageira foi pro saco quando mostrei meu livro à venda. Bateu palmas, pediu detalhes, deu chilique quando mostrei minha foto com a Fernanda Lima, Amor & Sexo, "ARRASOU, VIADO!!", quase perdeu o hamster pela janela do táxi, pediu que eu sintonizasse um batidão no rádio, que tocava FM Cultura bem baixinho, mas já era hora de desembarcar, a corrida chegava ao fim, minha cliente lamentou estar sem bateria pra fazer uma selfie. Melhor assim.
Desceu do táxi e entrou requebrando pela vila, jogando charme para os papeleiros que saiam para o trabalho puxando seus carrinhos, os gatos abanando o rabo para o hamster apavorado no braço de sua nova cuidadora.
Mais um dia no paraíso.

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