Adorável

Vencidas algumas quadras, a corrida já havia adquirido seu ritmo normal: a passageira já tinha indicado o destino, tínhamos definido o trajeto, eu voltara a elevar uns dois pontinhos o volume do rádio. Depois desse primeiro momento da corrida, seria de se esperar que a mulher se acomodasse no banco traseiro com seus pensamentos, mas ela resolveu puxar assunto. Perguntou como tinha começado 2015 para mim.

 

O ano começou realmente bem, respondi. Minha filha passou no vestibular! Retribuindo a curiosidade, questionei se para ela o novo ano também estava sendo bom. Depois de um silêncio em que eu pensei que não tivesse escutado minha pergunta, a passageira respondeu com a voz já um pouco mais aguda:

 

-- Uma porcaria esse começo de ano!

 

Daí por diante, só ela falou. Explicou que havia acabado seu casamento de 9 anos. No espocar dos fogos da virada, taça de sidra na mão, minha cliente teria perguntado ao marido o que ele achava dela. “Adorável”, ele teria respondido. Segundo ela, a partir daquele adjetivo o casamento desandou de vez. Adorável seria a mãe que pariu seu marido. Uma parceira, depois de tantos anos de casamento, tem que ser mais do que adorável. Muito mais!

 

Ela teria começado a falar em ter filhos, uma coisa normal, mas o homem não dava o jeito. Gostaria de sair do apartamento, mudar para uma casa que acomodasse melhor os 5 gatos que tinha recolhido da rua... Enquanto relatava suas divergêcias com o marido, a mulher me controlava pelo retrovisor em busca de aprovação. Eu erguia as sobrancelhas, inclinava levemente a cabeça como quem diz sei lá.

 

Por fim, minha passageira acusou o ex-marido de ateu. Quando ela falava em Deus, ele a chamava de “crente”. Pelo retrovisor, o olhar da mulher esperava que eu concordasse que precisamos acreditar em algo, mas minhas sobrancelhas cada vez mais erguidas não iam além do sei lá, eu fora.

 

A passageira pagou a corrida e desceu contrariada. Os homens são mesmo todos iguais.