domingo, 3 de agosto de 2014

Dor de barriga

O soldado solicitou meu táxi na entrada da Policlínica Militar e eu parei. Minhas passageiras eram duas idosas. Mãe e filha. A velhinha sentada em uma cadeira de rodas tinha dificuldade de movimentos. Enquanto ajudava a mãe a embarcar, a filha pediu-me paciência e explicou: “cem anos”.

Era uma corrida longa. A idosa centenária sentada ao meu lado, na frente. A sua filha, talvez uns vinte anos mais jovem, mas não menos judiada pelo tempo, no banco de trás. Ela estava levando a mãe de volta para o asilo, depois de uma consulta médica.

A corrida transcorria normal. A velhinha ao meu lado era do tipo que não interage mais com o mundo. Os olhos embaçados, fixos, miravam o painel do carro. Seu único sinal de vida era um movimento que fazia projetando o corpo para a frente, como se tentasse se livrar do cinto de segurança. Vendo que eu parecia preocupado, a filha me tranquilizou: “é mania”.

A corrida começou a ficar tensa quando a centenária sentenciou: “Estou com dor de barriga”.

Acendeu-se o sinal de alerta dentro do táxi. A filha, aos berros (a mãe era surda), explicava que ela precisava “segurar”, que não tinha banheiro no caminho, que já estávamos chegando (mentira, estávamos parados em um enorme congestionamento). A mulher maldizia o fato de não ter trazido uma fralda reserva para a mãe - a que ela usava, tinham tirado na consulta.

O resto do trajeto foi percorrido em clima de expectativa. A centenária, agora, além dos movimentos para frente, também inclinava-se para o lado, como quem tenta liberar a saída de algo que está afligindo-lhe a alma. Meu olfato alerta tentando apurar algum tipo de vazamento, o ouvido tentando identificar algum ruído estranho. O clima pesou, abri a janela do táxi.

Quando chegamos ao asilo, a filha saiu em busca de ajuda. Um atendente apareceu e pegou a idosa no colo. Enquanto ela era erguida, eu esperava pelo pior. Puro suspense. Só voltei a respirar quando notei que o banco estava seco.

Um comentário:

ricardo garopaba blauth disse...

ALGO AFLIGINDO A ALMA.

Leio todos os fins de semanas o que um amigo taxista escreve sobre suas experiências na profissão em que atua.
Alem de motorista é pianista e escritor de textos semanais dos quais já publicou dois livros.
Muitos já sabem que falo de Mauro de Castro, autor dos Taxitramas.
Pouco importa se os acontecimentos que escreve aconteceram ou não, ou caso positivo se foi em seu carro ou de um companheiro que lhe relatou. São deliciosos de ler e acompanho seus escritos há tempo e sou um privilegiado em conhecer Mauro e sua família pessoalmente.
Vá a www.taxitramas.com.br e leia o que publicou esta hoje, 03 ago. Duvido que não ficará também preocupado com algo “pesando na alma” de uma anciã, sua passageira.
Alma, segundo mauro pode carregar muita coisa e precisa de tempos em tentos ser libertada.
Mauro teve a sorte que a libertação da anciã não ocorreu enquanto estava em seu taxi...........rssrsrsrsr

Ricardo garopaba Blauth