domingo, 2 de outubro de 2011

Um passado para esquecer

O passageiro entrou no meu táxi, sorriso largo, chamando-me pelo nome, perguntando como eu andava e estendendo-me a mão. Enquanto o cumprimentava, devolvi um sorriso amarelo e um olhar apertado, como quem diz "lembro-me de ti de algum lugar...". Só reconheci o sujeito quando ele lembrou que eu levava suas filhinhas gêmeas para o balé, isso há mais de 10 anos. Tive vontade de soltar sua mão de imediato, mas deixei que o cumprimento se desfizesse naturalmente, assim como meu sorriso amarelo.

Não foi à toa que não reconheci meu antigo passageiro. Apesar de ter sido seu taxista de confiança por algum tempo, ele agora estava bastante mudado: barba por fazer, muito mais magro e usando roupas bem comuns. Eu lembrava-me dele como um homem rico, arrogante, que desfilava com carros potentes e lindas mulheres.

A mudança na aparência, na certa, era proposital. Na época que deixou de usar meu táxi, o passageiro estava sendo acusado pela morte da ex-mulher. Ela tinha sido encontrada morta em seu apartamento. Com o transcorrer das investigações, o que parecia um caso de latrocínio transformou-se em homicídio. O ex-marido como o principal suspeito.

Em um processo rumoroso, o homem foi julgado, condenado e baixou o presídio (sempre jurando inocência).

Foi uma corrida estranha, para dizer o mínimo. Ele evitou o assunto do crime, preferindo falar das filhas, com quem diz estar tentando uma reaproximação. Uma está casada, em São Paulo, e a outra morando no Canadá.

Convertido evangélico, meu passageiro agora usa a palavra "misericórdia" como pontuação, entre uma frase e outra. Disse que descobriu a Palavra do Senhor na prisão, assim como minha coluna no Diário Gaúcho - segundo ele o jornal mais popular entre os "apenados".

Deixei-o em uma revenda de carros onde trabalha atualmente. Durante a corrida, acabei lembrando que ele ficara devendo algumas corridas, dez anos atrás. Achei melhor não cobrar. Ele parece o tipo de passageiro que um taxista não deve irritar.

7 comentários:

Dona Sra. Urtigão disse...

Mas como ter certeza, né ?

Anônimo disse...

Lembrava seu nome, mas esqueceu as corridas não pagas! Mas tenha "mesericórdia", e cuidado com o que escreve, pois seus leitores são no mínimo "perigosos" !!!!

tereza disse...

Como sempre, muito bom o seu texto!

Ricardo Mainieri disse...

Mauro, vc. além de ótimo escritor é um homem prudente. Nada de provocar o homem com vara curta...(rs)

Abraço.

Ricardo Mainieri

**** disse...

Nesse caso é melhor perder a grana, que na verdade já estava perdida mesmo.
Abraços!

Clarice disse...

Vizinho, esse negócio de conversão parece doença de presidiário. De qualquer maneira, compreensível o pé atrás. Precaução e caldo de galinha, sabe como é.
Tomara que seja um dos que pagam e se arrependem do erro. Complicado isso, viu?
Abraço.

Dalva M. Ferreira disse...

As voltas que a vida dá!